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O trânsito é intenso na avenida de seis pistas que corta um dos bairros mais nobres da capital chinesa, Pequim. É uma manhã de abril, horário do rush em um meio de semana comum de primavera, e carros e ônibus disputam espaço com uma profusão de motocicletas e bicicletas elétricas.
É uma cena tĂpica de qualquer megalĂłpole, salvo por um detalhe: tudo parece se passar em mute: nĂŁo há os esperados sons de motores e escapamentos.
O ambiente é tão silencioso que, da calçada, se pode ouvir um motorista tossir de dentro do carro do lado oposto da avenida.
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Embora seja provavelmente sĂł um efeito nĂŁo intencional, o bem-estar provocado pela Ăłbvia falta de ruĂdo no tráfego Ă© o primeiro sinal percebido por quem visita Pequim de que o trânsito no paĂs passou por uma revolução literalmente silenciosa na Ăşltima dĂ©cada.
Uma revolução que a China vem tentando exportar para o Ocidente a partir de paĂses como o Brasil.
Ao menos duas das mais bem-sucedidas empresas chinesas do ramo — a BYD e a Great Wall Motors — desembarcaram recentemente no paĂs anunciando investimentos bilionários. O movimento tem potencial para ser o mais robusto plano de produção automobilĂstica elĂ©trica chinesa fora da China.
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Para Pequim, Ă© mais do que uma oportunidade de avançar sobre um mercado promissor e ainda nĂŁo explorado. É tambĂ©m a chance de abrir dianteira na disputa com os Estados Unidos por parcerias tecnolĂłgicas com o Brasil para produção de itens essenciais como chips e pela exploração de reservas brasileiras de minerais crĂticos, como lĂtio e metais de terras raras.
O que os chineses fizeram com o trânsito?
Mais da metade da frota mundial de carros elétricos — que baterá os 77 milhões de unidades em 2025 — circula na China.
Em 2022, quando a venda global desse tipo de veĂculo atingiu o recorde de 10 milhões de unidades, a China foi responsável por 60% delas — e já bateu a meta estabelecida pelo prĂłprio governo para 2025. Em comparação, os EUA responderam por apenas 8% das vendas em 2022, segundo os dados da AgĂŞncia Internacional de Energia.
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“Há 15 anos, quando a China se questionou sobre como poderia chegar a ter uma presença privilegiada na produção mundial de automĂłveis, percebeu que nĂŁo tinha chances de competir nos veĂculos convencionais Ă combustĂŁo, porque já havia produção de ponta e escala da Europa, dos Estados Unidos, do JapĂŁo e da Coreia do Sul. EntĂŁo, o governo chinĂŞs decidiu se diferenciar indo na eletrificação, investindo no desenvolvimento de baterias”, diz Cássio Pagliarini, consultor automotivo da Bright e ex-diretor de marketing da Hyundai.
“Hoje, eles tĂŞm dez anos de vantagem sobre as concorrentes de outros paĂses tanto em tecnologia quanto em preço de produção de bateria.”
A ideia nĂŁo era sĂł aumentar a presença no setor automotivo — o governo chinĂŞs percebeu que o investimento poderia ajudar o paĂs a reduzir os Ăndices de poluição de suas cidades e engrossar sua polĂtica climática, alĂ©m de limitar a dependĂŞncia da importação de petrĂłleo e ajudar a economia apĂłs a crise de 2008.
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A China começou a criar pesados incentivos fiscais aos eletrificados (elĂ©tricos e hĂbridos, que funcionam com sistema elĂ©trico e Ă combustĂŁo) e a firmar volumosos contratos estatais para transporte pĂşblico verde, em um processo que segue em curso.
O termo “eletrificado” tem sido usado para se referir a carros com algum nĂvel de eletrificação, e nĂŁo necessariamente se refere apenas aos carros movidos 100% a energia elĂ©trica.
Em junho deste ano, a China anunciou o plano mais ambicioso de impulsionamento do setor automobilĂstico verde: serĂŁo US$ 72,3 bilhões em pacote de incentivos fiscais ao longo de quatro anos.
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De outro lado, Pequim aplicou tributos sobre os veĂculos a combustĂŁo. O emplacamento de um carro a gasolina no paĂs custa algumas dezenas de milhares de dĂłlares e pode levar anos para ser aprovado. Já os elĂ©tricos estĂŁo isentos de qualquer burocracia ou custo para circular.
O resultado foi uma profusĂŁo de fabricantes de veĂculos eletrificados chineses — algumas estimativas apontam para ao menos 300 delas no mercado.
“A BYD e a GWM, que são grandes, já estão chegando no Brasil, mas sabemos de ao menos outras duas ou três montadoras chinesas que estudam entrar no mercado em breve”, afirmou Pagliarini, que alegou motivos contratuais para não abrir os nomes das fabricantes que lhe fizeram consultas.
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O que os chineses viram no Brasil?
Há pouco mais de uma semana, a BYD, que superou a americana Tesla, do bilionário sul-africano Elon Musk, como maior produtora de veĂculos elĂ©tricos do mundo, anunciou que fará um investimento inicial de R$ 3 bilhões em uma planta industrial em Camaçari, na Bahia, e que “nĂŁo poupará recursos para assumir a liderança na venda de veĂculos no paĂs.”
A planta, que pertencia à americana Ford e produzia os modelos Ka e EcoSport, mas cuja operação se encerrara em 2021, foi alvo de uma intensa negociação entre chineses e americanos ao longo dos últimos 9 meses.
Na prática, a fábrica se tornou um sĂmbolo de uma disputa geopolĂtica maior entre EUA e China por influĂŞncia em mercados globais relevantes. Concretizar o negĂłcio se converteu tambĂ©m em uma prioridade para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pressionou para que o negĂłcio fosse fechado ainda durante a visita do presidente brasileiro ao paĂs, em abril, o que nĂŁo aconteceu.
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“Em todas as reuniões que tivemos com o presidente Lula, ele disse que tem em mente uma reindustrialização do Brasil, mas quer que isso seja feito com fábricas de alta tecnologia, com inovação muito expressiva e geração expressiva de número de postos de trabalho. E que o presidente tem na China um aliado, seja como produtor, seja como consumidor, para reindustrializar o Brasil”, afirmou à BBC News Brasil o ex-ministro das Cidades Alexandre Baldy, conselheiro da BYD no Brasil desde o fim de 2022.
Tanto o governo federal quanto o da Bahia se lançaram a fazer intermediações entre Ford e BYD para desfazer impasses na venda. Mas as tratativas ainda se alongaram por quase trĂŞs meses apĂłs a visita do lĂder brasileiro Ă China.
A transação, fechada por cerca de R$150 milhões, ainda nĂŁo foi oficializada publicamente pelas partes. No entanto, Ă© considerada tĂŁo certa que já motivou o envio de mais de 40 mil currĂculos de metalĂşrgicos e funcionários administrativos para a empresa chinesa (a expectativa Ă© de geração de atĂ© 5 mil empregos diretos no auge da operação fabril).
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As reformas na planta devem começar nas próximas semanas e a expectativa da BYD é que seus primeiros modelos com DNA brasileiro cheguem ao mercado até o final do ano que vem.
“Em cinco anos, esperamos estar entre as três maiores montadoras do Brasil, com uma entrega de 300 mil novas unidades por ano e com 70% de cada uma delas com conteúdo brasileiro”, diz Baldy.
AlĂ©m do modelo 100% elĂ©trico batizado de Dolphin, a empresa produzirá no Brasil o Song Plus, um hĂbrido que, na versĂŁo brasileira, deverá ter motor a combustĂŁo totalmente movido a etanol.
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A BYD enfrentará no Brasil a concorrência de uma velha conhecida sua.
A Great Wall Motors (GWM) anunciou há poucos dias a expansĂŁo da capacidade produtiva de 20 mil para 100 mil unidades de veĂculos eletrificados por ano em sua planta, em Iracemápolis, no interior paulista.
A fábrica, que pertencia à Mercedes Benz até 2021, tem passado por adaptações para iniciar sua pré-produção industrial em 1o de maio de 2024.
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Na prĂłxima semana, a marca pretende lançar um novo modelo 100% elĂ©trico no paĂs, que se juntará ao SUV hĂbrido Haval H6 e Ă picape mĂ©dia Poer.
“Fora da China, até então, a GWM só tinha fábricas pequenas na Tailândia e na Rússia, para atender demandas mais locais. A operação da GWM no Brasil será a primeira no Ocidente, não temos nada na Europa ou nos EUA. É uma chegada em um novo mercado e uma chegada com um aporte de R$10 bilhões de investimentos da matriz chinesa aqui até 2031”, disse à BBC News Brasil Ricardo Bastos, diretor de relações institucionais e governamentais da GWM, mesmo posto que ocupou por quase 12 anos na Toyota.
O interesse das montadoras chinesas no Brasil alia motivos geopolĂticos, econĂ´micos e tecnolĂłgicos.
Em 2021, o Brasil já era o maior destino estrangeiro de investimentos chineses no mundo.
“No ano passado, a venda de carros no Brasil foi de 2 milhões de unidades, mas nós já tivemos quase 4 milhões sendo vendidas por ano, em 2012. Onde há um mercado desse tamanho não atendido por montadoras chinesas no mundo?”, diz Pagliarini.
Segundo Baldy, a BYD está convencida de que o Brasil deve acelerar o processo de substituição da frota nacional Ă combustĂŁo por veĂculos elĂ©tricos, o que abriria um mercado ainda maior para a empresa no paĂs.
“Mas o Brasil tambĂ©m serviria como um hub de exportação para toda a AmĂ©rica Latina, com as facilidades do Mercosul e, possivelmente, atĂ© mesmo pra Europa, ainda mais se for concluĂdo o acordo Mercosul-UniĂŁo Europeia”, diz Pagliarini.
Bastos, no entanto, vai além. “Brasil e China têm uma parceria estratégica e a relação hoje evoluiu para além de intercâmbio comercial de produtos, para uma transferência de tecnologia”.
A GWM e a BYD trabalham com a perspectiva de produção de diversas partes do veĂculo, inclusive de baterias, com fornecedores brasileiros. Nos planos das montadoras estaria atĂ© mesmo a possibilidade de apoiar a exploração de lĂtio no paĂs, mineral tambĂ©m alvo de interesse das maiores potĂŞncias mundiais.
Caro pra comprar, barato pra circular
Ao menos inicialmente, porém, as montadoras chinesas não entram no mercado com condições para atender a todos os bolsos. O modelo mais barato da BYD, por exemplo, custa quase R$ 150 mil.
A explicação para o preço alto Ă© dupla. Primeiro, ao entrar em um mercado novo, as empresas optam por produtos que lhes garantam maior margem de lucro, caso dos modelos mais sofisticados, e que permitam adequar aos poucos a escala de produção, para evitar eventuais perdas e prejuĂzos no processo.
Segundo porque os carros elétricos não conseguem, por enquanto, competir em preço com os populares à combustão.
Pagliarini dá um exemplo para ilustrar a situação: “No Brasil, o Renault Kwid elétrico custa R$146mil, enquanto o mesmo carro à combustão sai por R$ 69 mil. É certo que o preço dos eletrificados vai baixar, mas não acredito que eles alcançarão os valores dos populares a gasolina atuais”.
Na China, a BYD Ă© capaz de produzir o seu veĂculo mais barato a um custo que equivale a R$ 55 mil — mas nĂŁo prevĂŞ por enquanto que o modelo chegue ao Brasil, tampouco nesta faixa de preço.
Para o consumidor que opta por um elétrico, a vantagem financeira está na hora de circular: o custo do quilômetro rodado de um elétrico é, em média, 20% do valor por km à gasolina, no Brasil.
Faz especialmente sentido para quem roda muito com o carro, como motoristas de aplicativo. Na semana passada, a empresa e aplicativo de transporte individual 99 anunciou que pretende facilitar a compra de 300 veĂculos da BYD para seus motoristas.
Segundo Pagliarini, a presença dos elĂ©tricos e hĂbridos no Brasil vai crescer nos prĂłximos anos, mas Ă© esperado que as montadoras tradicionalmente instaladas no paĂs reajam com agilidade a uma eventual competição com os chineses.
“Projetamos que até 2032, entre 38% e 40% da frota estará nessa categoria. Deles, os chineses deverão ser uns 20%”.